Coleção de janelas

ja·ne·la
(latim vulgar januella, diminutivo de janua, -ae, porta, entrada)
substantivo feminino
1. Abertura feita em parede ou telhado de uma construção, para deixar entrar claridade e ar.

Comecei a colecionar janelas em 2011, quando fui passar férias na minha cidade natal, Recife. Durante um tour que gosto de fazer pelo Recife Antigo, iniciei uma série de fotos de janelas. A paixão ultrapassou fronteiras.
No ano seguinte, fui para Ouro Preto (MG), onde tive o prazer de juntar mais uma dúzia para a minha coleção. E no fim daquele ano, viajei para Argentina. De lá, eu fiz questão de guardar comigo as janelas do Caminito e do Palermo, além de algumas poucas (mas boas) das cidades de Córdoba e Mendoza.

Cabeça de cachorro

Uma comoção no meio da Praça da Sé. Algo muito peculiar chamava atenção dos mais céticos e menos crentes com os milagres da vida. Helicópteros de reportagem se aproximavam como uma manada de mosquitos. A Polícia Militar tentava acalmar a multidão. Ônibus fizeram fila na estreita rua Anita Garibaldi, inclusive aqueles cuja rota não ousa passar por ali. O metrô estava insuportavelmente lotado, todas as linhas que cruzam naquele ponto vermelho ficaram estacionadas. São Paulo inteira estava curiosa. Isso é uma obra de Deus, diziam os católicos fervorosos. Que coisa mais diabólica e ao mesmo tempo tão divina, se contradizia o evangélico. Só pode ser uma intervenção artística de uma agência conceitual, falava agnosticamente um estudante de publicidade. São dois espíritos em um corpo só, comentava iluminadamente o espírita. Certamente, aquilo estava fora do conhecimento humano, ninguém nunca tinha visto nada igual.

 Não muito longe dali, um menino sempre admirou a beleza e a liberdade por trás da coleira de um cachorro. Ao passear na rua, esses animais de estimação são paparicados: homens, mulheres, crianças, idosos e até outros cachorros. Os cachorros têm o livre arbítrio de escolher o que fazer: se quiser comer, tem um pote cheio de ração à espera para ser devorada; se quer aliviar a bexiga, tem um sofá novinho para inauguração digna; se quer latir, late; se quer dormir, se estende no chão gelado, ou no confortável tapete e sonha. Era um animal livre, sem obrigações. Um pouco de inveja era injetada na veia daquele menino, que ao avistar um desses animais na rua, fazia questão de lhes fazer um pouco de carinho e silenciosamente desejar ser um deles.

 Depois de um estrondo no céu, o cachorro pulou de susto, não porque o céu esbravejou, mas sim porque à sua frente o menino acabara de se transformar. Certamente, aquele cachorro nunca viria algo mais bizarro do que aquilo. Mais um trovão ecoa pelas nuvens, e o cachorro começa a latir furiosamente para aquele menino tão grotesco.

 Por causa do susto que o cachorro tinha levado com a trovoada, o menino parou de alisar seus pelos e agradeceu ao dono a permissão lhe concedida. O menino sempre foi educado, às vezes fora do padrão do bom moço. O último pedido de sua mãe foi que nunca lhe faltasse o mínimo de educação para com os outros. E assim ele carregou o desejo como missão de sobrevivência. Infelizmente, a vida não funciona assim. A mãe dele nunca saberia, mas nem com a extrema polidez do menino, ele conseguiria ter uma vida digna. Era sem-teto e excluído pela sociedade.

 O menino cumprimentava todos que cruzavam seu caminho, com um sorriso no rosto. As pessoas, por sua vez, não respondiam, ignoravam sua hedionda educação. Aqueles que paravam por breve momento, eram obrigados, pois os cachorros se encantavam com o menino. Tinha algo de especial na feiúra humana que enfeitiçava o mais bonito dos canídeos. O menino não era provido de beleza, de certo era uma criança considerada feia; nem bonitinha, nem mais ou menos feinha, era uma criança feia. Seus olhos eram esbugalhados, como os de um pug; tinha as orelhas de abano, iguais ao do buldogue francês; e o nariz puxava o lábio superior, como o shih tzu.

 Naquele dia nublado, as pessoas reagiram desigualmente à falta de beleza do menino. Não com desgosto, mas com medo. O menino, que se dirigia à Catedral da Sé, para rezar orações à falecida mãe, começou a atrair não só os cachorros, mas as pessoas que sempre o ignoravam. Enquanto ele andava, uma multidão se aglomerava em seu caminho. No meio da Praça da Sé, não tinha mais espaço para ele se locomover. Lá ele ficou parado encarando as pessoas ao redor, que o encaravam de volta. Ele tinha chamado atenção dos mais céticos e menos crentes com os milagres da vida. Certamente, aquilo estava fora do conhecimento humano, ninguém nunca tinha visto nada igual. Aos poucos o medo se transformou em curiosidade. As pessoas se aproximaram dele e começaram a cariciá-lo enquanto imitavam vozes de bebê. De tanto desejar, o menino tinha incorporado uma cabeça de um cachorro. Agora, ele não era mais ignorado, tinha chamado atenção. Todos queriam tocar em um fiapo de pelo daquele ser monstruosamente extraordinário. Se o menino tivesse um rabo, ele o teria abanado.

 O céu estava ainda mais cinza. Um trovão ecoa pelo céu. A chuva começa a cair em pingos grossos. E, assim, como aquele cachorro – a primeira vítima – assustado com a aparência do menino recuou, as pessoas pararam de acariciá-lo. As expressões se entortaram, e todos sentiram um pouco de asco, de desgosto. Rapidamente, a Praça da Sé se esvazia. Os ônibus lotam de curiosos frustrados. As linhas do metrô voltam a se cruzar. O fluxo retoma sua velha forma. A polícia transgride para o patrulhamento de rotina. Os repórteres não dão a notícia. Isso é coisa do capeta, diziam os católicos friamente. Que coisa mais pecaminosa e ao mesmo tempo tão sublime, ainda não se decidia o evangélico. Só pode ser uma intervenção artística de uma agência conceitual, continuava falando agnosticamente um estudante de publicidade. É um espírito escuso ocupando o corpo de um humilde garoto, comentava sombriamente o espírita. O menino que havia incorporado a cabeça de um cachorro, agora, tinha retornado à sua original face.

 O menino abaixa a cabeça e volta a seguir para a Catedral. Já tinha passado das 19h. Ele estava devendo algumas rezas para a mãe. Ao perceber que a porta já tinha sido fechada, o menino educadamente insiste em ser aberta uma exceção. O segurança encara o menino. Minutos antes ao fazer um carinho em sua antiga cabeça de cachorro, o segurança tinha sentido algo de magnífico em sua alma. Mas agora não o reconhecia como aquele ser divino. Em um ímpeto burocrático, o segurança barra aquela criatura encharcada em forma de menino e o impede de orar para a mãe. A mãe dele continuaria sem saber que nem com a extrema polidez do menino, ele conseguiria ter uma vida digna.

Love will tear us apart again

Estava fadado a escutar aquela música. Ainda me recordava daquela carta que ela me deu quando eu parti: “why is the bedroom so cold?”. Na época, não tinha entendido. Éramos amantes velados. Nunca nos beijamos ou nos tocamos. Escondidos, nos encontrávamos na praça ao lado da casa dela. Eu ia partir, e ela ficaria eternamente naquela cidade. Tínhamos conversas infinitas sobre a reconstrução da vida (1). Queríamos fugir do presente que nos aprisionava e impedia que pudéssemos ser felizes juntos sem encontros ocultos. Ela estava prometida à tradição de cidade pequena. Eu queria fugir daquela lentidão. Sempre houve uma tensão entre nós dois. Nos separamos pelo acaso e pela oportunidade que me esperava na megalópole.

Sentado na poltrona dura e fria do metrô, lentamente abri os olhos, enquanto abaixava minha cabeça em direção ao iphone, para procurar uma nova canção. Achar um novo amor. Eram 1269 músicas, mais de quatro dias tocando sem parar, um pouco mais de 7 gigas de velhos amores livres e prontos para serem escolhidos. Enquanto me perdia naquela imensidão digital que eu havia cultivado para me esconder da vida, me perdia também em recordações.

Quando eu percebi a citação à música do Ian Curtis, imediatamente liguei para ela. Interurbano, caro, mas honesto. Lembrei, eu disse. Do outro lado da linha e do país, ela me responde estar casada. Há sete anos, ela ainda me culpava pelo desamparo. Foi isso que ela quis dizer. Eu tinha de fato me virado de lado e deixado o quarto tão frio (2). Nunca foi do feitio dela se aprisionar a um compromisso. Ela se agarrou ao que passou mais próximo. Ela tinha perdido o controle (3).

As luzes vão e voltam da janela do vagão e me provocam vertigem. Sinal de labirintite, dizia minha tia, tem que se medicar. Meu remédio é escolher uma melodia mais animada. Quando mais jovem, eu tinha disso: conseguia mudar o humor trocando de música. No dia em que joguei tudo para cima e resolvi mudar de direção, minha mãe rogou pragas para o futuro de artista que eu tinha escolhido. Fechei a porta e coloquei Transmission pra tocar. Segui em frente como se nada tivesse acontecido, e me escondi daqueles dias (4). Cinco anos depois, minha mãe teria morrido de infarto. Nesse dia, estava preso no trânsito, e não existia sequer uma música que mudasse o meu humor. Era horário político.

Novamente, a tática não ajudou muito. Continuei afundando em lembranças. A voz, o cheiro, o calor do cobertor. Eu prometo continuar do mesmo lado. Tentei abrir os olhos do sono que o sacolejar do metrô me embalava. Sonhei brevemente que naquele dia, no dia que ela me entregou a carta, eu a beijaria. Tinha desistido de viajar para tão longe para tentar uma vida diferente. Transgrediria e viraria um advogado, como de praxe. Meu paletó seria sempre colocado por suas mãos calejadas dos serviços da casa. Eu as tocaria, e ela lentamente as recolheria. Nossos dias virariam rotinas inquietantes. Eu poderia viver um pouco melhor com os mitos e as mentiras (5).

Subitamente o metrô para. Estamos esperando o próximo trem sair da plataforma, anuncia a voz endeusada. Abri os olhos e enxerguei. Graciosa, com as pernas juntas, com o cotovelo apoiado em suas coxas, ela lia e sorria. Como ela fazia isso? Estava compenetrada. Não era mais aquela garota que abandonei. O trem continua. Ela estava na cidade grande, e os anos haviam abatido em seus cabelos e naquela pele suave que tanto desejei acariciar. Em sua mão esquerda faltava uma aliança.

O trem para na Consolação. Uma multidão de executivos e augustinos lotam o vagão. Tento procurar por alguma brecha que ilumine seu rosto que, ainda bem, continua lá, lendo. Eu poderia me deslocar e seguir em sua direção. Lha falaria o quanto pensei nela nesses últimos nove anos.

Nove anos que ela me entregara aquela carta e destruiria o fervor daquela banda tão dançante e ao mesmo tempo melancólica. Ela passeia os dedos na borda da folha, prontamente para virar a página. Queria ser essa tangência entre o velho e o novo. Queria ser aquele fiapo de papel esperto para rasgar um pedaço de carne. Mas ela não se corta. Ela vira a página nas profundezas da memória, do que uma vez era o amor (6).

Ela sempre me disse que odiava pessoas que a interrompesse enquanto apreciava um bom livro. Aquele em capa dura que ela segurava parecia um bom livro. Você deveria ser mais cavalheiro, ela insinuava. Nessa noite, eu seria o cavalheiro que ela sempre quis. O trem para no Paraíso. Ali fiquei. Ela continuou. O iphone estava no shuffle. Love will tear us apart again volta a tocar.

Notas:

(1) Trecho da música Atmosphere: “endless talking / life rebuilding”

(2) Trecho da música Love will tear us apart again: “why is the bedroom so cold?
/ you’ve turned away on your side”

(3) Trecho da música She’s lost control: “and she’s clinging to the nearest passer by / she’s lost control”

(4) Trecho da música Transmission: “and we would go on as though nothing was wrong / and hide from these days we remained all alone”

(5) Trecho da música She’s lost control: “I could live a little better with the myths and the lies”

(6) Trecho da música 24 hours: “deep in the memory, of what once was love”

O bicho e o cachorro

Primeira vez que o vi, notei que éramos muito parecidos. Apesar de nunca termos nos falado durante nosso relacionamento, éramos muito parecidos. Eu o reconhecia por seu cheiro. Um perfume forte, extasiante e horrível. Mas para ficar ao seu lado, até isso agüentava. Nunca discutimos sobre mudanças de hábito, nem, ao menos, um chiado.
Foi uma companhia breve. Mas, dizem por aí, que o tempo passa mais rápido para mim. Um ano equivale a sete… E nosso apego não passou de uma caminhada de apenas meros 10 minutos.
Eu sabia que ele não era daqui. Assim como eu, ele era um errante. Refugiado da cidade, na cidade. Eu escutava seus sussurros, ele fugia de alguém. O que era, não deu para entender, mas ele tinha feito algo muito grave. Eu não me importava com isso, com seu passado. Gostava de sua presença, naquele momento.
Às vezes eu pedia por algum apreço, eu olhava para cima, fazia meu conhecido olhar, e suspirava forte. Infelizmente, ele não entendia a minha ânsia. Talvez, porque quando eu respirava, eu espirrava uma pneumonia que me afligia desde que acordei naquela manhã.
Estava frio naquela noite, então, vez outra, eu me agarrava em sua perna, apenas para sentir o calor de medo que ele exalava. Mas eu era enxotado para longe. Novamente, eu não me importava com sua falta de carinho, só queria estar ao seu lado, acompanhá-lo para onde ele estivesse indo.
Paramos. Estava vermelho. Os carros passavam perante nossos olhos. Os meus e os dele. Em uma última tentativa de carência, olhei mais uma vez para cima, aproximei-me de sua canela para me aquecer. Sinto uma dor em minha costela. Meus olhos se fecham para sanar a agonia.

Precisava fugir. Eu não queria ter usado aquele canivete. Era do meu avô. E nele não podia respingar qualquer gota de sangue, senão da minha família. Mas ela carregaria meu sobrenome. Não fosse por sua desobediência.
Estava atrasado, então, acelerei meus passos, deveria chegar ao estacionamento, antes que virasse a hora. Não queria pagar mais 10 reais por um carro parado em um terreno. Um absurdo.
Levo comigo o canivete. Era do meu avô. É meu, agora, e faz parte da minha história. Não vou largá-lo em qualquer lugar. Junto às suas lâminas, guardo o sangue de uma entranha machucada.
Olho para baixo, um cachorro. Não um cachorro qualquer, um bicho asmático, sem fôlego para me acompanhar. Aperto minha caminhada. E o infeliz continua a me seguir. E ainda, tenta compartilhar piolhos comigo. Chuto-o, e ele tosse.
Aquela peste de quatro patas certamente carregava consigo alguma maldição. Fez parar o trânsito de pessoas, e o sinal que estava verde durante todo o caminho, subitamente, torna-se vermelho. Mais uma vez, o cachorro esfrega suas pulgas em meu jeans. Dou-lhe um pontapé como resposta. Jogo-o longe de mim, finalmente, livro-me de um pesadelo. Com fasto em minhas retinas, observo-o estendido na rua, até um carro passar, e espalhar vísceras por todos os lados. Inclusive em meu jeans. Maldito cachorro.

Ode ao líquido

Sua negritude me enaltece
O amargo de seu sabor estremece minha língua
Desejo mais
Meu corpo grita pela inquietação de seu efeito sobre meus neurônios
Esquenta meus pensamentos
E me conforta com seu aroma de fazenda
Peculiar, transformar a noite em dia
Repleto de prazeres sombrios
Seu suor, seu pó
Agita minha manhã dengosa
Saio da cama por você
Não fosse assim, meu sono seria fúnebre
As mazelas da vida são deixadas de lado
Traz em mim a libido da excitação
Afaga-me com o encanto de acordar
Levanta meu corpo para o trabalho
Torna-me um produto de massa
Me amassa, me despreza, me deforma
Esfrega sua cor escura embaixo de meus olhos
Não te quero mais

Dia do Café

Expedição Rio Pinheiros Vivo – Comentário

Mais um e-mail chega em minha caixa de entrada. O título era estranho, mais parecia um spam ou uma assinatura de newsletter a qual eu nunca havia me cadastrado. De qualquer forma, resolvi abrir aquela mensagem. Era de uma amiga minha: Camila Pastorelli. Ela sempre foi muito envolvida em eventos fotográficos, afinal, trabalha para uma produtora de imagem; e também, aficionada pelo meio ambiente e sustentabilidade. Na verdade, conheci Camila no primeiro meu estágio em que procurávamos histórias sobre ecologia pelo Brasil inteiro.

O e-mail tinha a cara de Camila: foto e sustentabilidade. Uma tal de expedição midiática pelas margens do Rio Pinheiros, que corta a cidade quase completamente, para registrar de todas a maneiras possíveis uma das linhas fluviais mais poluídas de São Paulo. Na mensagem, Camila se adiantou: eu me inscrevi no Grupo 14. O grupo me interessou bastante, não por Camila ter se associado, mas por ser muito próximo aonde moro: Ceagesp. A intenção desse grupo era historiar a maior feira de São Paulo através de fotos artísticas que seriam coordenadas pelo jovem Gui Mohallem.

A Expedição Multimidiática Rio Pinheiros Vivo, nome e sobrenome, foi uma iniciativa da Associação Águas Claras do Rio Pinheiros formada por 8 empresas que se deleitam pelas margens do rio. Utilizando-se de uma jornada cívica, cultural e ecológica, a ideia da Associação é aproximar à realidade da condição do rio como uma opção de lazer. Imagina, num domingo ensolarado, a primeira opção para sair de casa: apreciar as águas fluviais que cortam a cidade. Uma utopia. Mas mesmo assim, a ideia é um tanto consistente se tentar mudar o olhar daquele cidadão que pouco se interessa por uma questão urbana. Ao menos, transformar os olhares ausentes em presentes, já vale uma expedição.

O Rio foi dividido em 30 temas que seriam observados por 30 grupos. Cada grupo com seu coordenador especialista em alguma área da comunicação iria orientar seus partidários para registrar aquela região da melhor maneira possível. Teve foto, som, poesia, desenho. Teve de tudo.

Demorei três dias para resolver se acompanharia Camila nessa jornada. Eu não sei tanto assim de foto como ela, nem estava a fim de acordar cedo para registrar imagens de frutas e verduras. Num ímpeto, apertei o botão para confirmar presença, e estava feita a inscrição. Agora era esperar pelo grande dia. Afinal, aquilo tudo era uma novidade para mim: saída fotográfica, expedição com coordenador reconhecido, encontro de fotógrafos e por aí vai.

Antes da expedição, foi marcado um Workshop: justo numa sexta-feira logo após o expediente. Eu faltei. O bar, lógico. Precisava, antes de tudo, me enturmar com uma equipe que, provavelmente, se conhecia de datas passadas. O Workshop, que aconteceu na sexta-feira treze, foi realizado em uma das salas futurísticas e, assim, modernas do prédio imponente do Santander localizado à beira do Rio Pinheiros. Ao chegar, passei pela recepção, um adesivo simpático foi colado em minha roupa, e pediram para que eu sentasse uma das poltronas imperiais da sala de espera. Naquele momento, eu não estava só, minha amiga Camila chegou no mesmo minuto que eu, e todo aquele ritual foi realizado com ela na mesma ordem.

Ao liberarem a entrada, subimos dois lances de escadas rolantes para, enfim, adentrarmos na tal sala futurística e, assim, moderna. Eram muitas cadeiras para poucas pessoas. Por enquanto. O trânsito de São Paulo castiga até os mais dotados de altruísmo. Aos poucos, as cadeiras solitárias encontravam companhias. Enquanto isso, o coordenador do grupo, ainda tímido, ajeitava a sua surpresa para o Workshop. Sacou de sua bolsa um papel filtro para envolver a mesa de apresentação. Por fim, estava tudo em seu lugar: as cadeiras estavam acompanhadas, a mesa plastificada, e o coordenador já sorria mais descontraído para todos os presentes.

Cada um se apresentava: nome, profissão e objetivo para com a expedição. Tinha de tudo: fotógrafo profissional empolgado com a autorização para tirar fotos no local (muito burocrático, pelo visto); administrador, técnico de informática e estudante vibrando com a oportunidade de conhecer pessoas e técnicas imagéticas; e admiradores do espaço em si, o Ceagesp que periga desaparecer, e gostariam de apreciar com outros olhares.

Terminada a apresentação de todos os membros do Grupo 14, o coordenador, Gui Mohallem, revela a surpresa. Ele explica que passou o fim de semana inteiro pensando em como retratar o rio através das fotografias de alimentos que estariam longe do fluvial. Pensou, pensou, pensou. Enfim, chegou numa solução lúdica: criação de filtros. Para mostrar a sujeira do rio, ou, até mesmo, criar o efeito de afogar as verduras e frutas, os filtros caseiros iam causar impressões surreais nas fotos.

Então, com pedaços de vidro, terra, óleo vegetal de cozinha, temperos, detergente do banheiro do edifício empresarial, e muito papel para correções de exagero, foram criados diversos filtros que imprimiam muitos efeitos interessantes. Agora, era esperar para tirar foto no domingo.

No relógio, o galo cantava para anunciar a aurora matinal. Eram seis e meia, e boa parte do Grupo 14 se reunia em frente ao pavilhão de verduras, frutas e flores do Ceagesp, perto do portão três, ao lado da banca de revistas. Estavam todos entusiasmados com o clima: sol estava para aparecer e aquecer, e a chuva não dava prelúdio. Bateram sete horas da manhã, munidos de suas metralhadoras registradoras de ícones imóveis, os fotógrafos, o administrador, o técnico de informática, estudantes e admiradores se embrenham entre os toldos listrados e barraquinhas alimentícias.

Era tudo admirável: as cores vibravam através das lentes 200mm; as pessoas sorriam como se fossem o Gato de Cheshire e, ao invés de desaparecerem, eram eternamente registradas pelas lentes 55mm; os pombos, verdadeiros ratos voadores, davam o ar de sua graça através das lentes 85mm. Os contrates nunca foram tão apreciados como naquele domingo. As cebolas brancas e roxas-quase-pretas representavam o balé hollywoodiano, Cisne Negro. Eram muitas referências. O ritual preferido entre o Grupo 14 era tirar fotos em sequência: uma normal, sem efeito, e a próxima, mesma pose, com o filtro em frente à câmera.

Naquele dia, o rio atingiu o Ceagesp, não por efeitos pluviais, mas as alfaces, cenouras, os abacaxis, os comerciantes até a maquete da feira, todos foram afogados pelo efeito do Rio Pinheiros Vivo.

Para ver as fotos que eu registrei no dia, clica aqui

Conversa de Jorge Ben

– Alô, Comanche!

– Alô, alô, como vai?

– Cara, estou abatido… Foi a mais linda história de amor
 e agora eu vou contar para você

– Não sei não, assim você acaba me conquistando

– Deixe de ser chato, Comanche, me escute. Lá fora estava chovendo, e eu corria para ver o meu amor, toda de branco. Chovia, a chuva. Ela passava e não me olhava… Mas eu olhava pra ela. Ela não me dizia nada…

– Take it easy my brother…

– Eu sofri, Comanche… O telefone tocava novamente, eu ia atender e não era meu amor. Ela já não gostava mais de mim, mas continuo gostando dela mesmo assim

– Que pena

– Pois está fazendo um ano e meio…

– Que viúva é essa que todos querem?

– Comanche, ela tem um dote físico e financeiro… invejável

– Eu quero ver

– Comanche… Pois eu vou fazer uma prece… Eu canto o amor, eu canto a alegria,
eu canto a fé. Por que ela não pensa e volta pra mim?

– Brother, você nasceu pra viver contente, com toda gente… Só depende de você viver essa alegria

– E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia

– Minha mãe me chama, pois os alquimistas estão chegando

– Roberto, corta essa!

– Corta! Mais uma vez…

– Alô, Comanche!

 

Vocês conseguem adivinhar quantas músicas de Jorge foram usadas neste diálogo?

Publicado em Novas Histórias

 

O dedo de Mahmood Ahmad

Depois de vender kebabs para esfomeados da zona leste de Londres, Mahmood Ahmad partiu para casa, ansiando em passar pela porta de sua residência e encontrar sua esposa. Não foi isso que ocorreu. Riaz, seu cunhado, com a ajuda de comparsas, atrapalha o caminho de Mahmood, e o aborda na trajetória. Era um sequestro. Riaz levou o seu irmão-por-lei para outra casa que não era dele. Lá, ele iniciou uma sessão de torturas escandalosas. Os vizinhos escutavam, mas preferiram não denunciar.

Mahmood foi esquartejado para não ser encontrado. O apartamento em que ocorreu o homicídio foi destruído. O carro usado para o sequestro apareceu desmantelado. Riaz, que sorria nas fotos de casamento de Mahmood, foi preso como suspeito. Ele ria ainda mais, não havia provas. Os pedaços de Mahmood não foram encontrados. Com exceção de um dedo caído do céu. Literalmente. Câmeras de um estacionamento gravaram o momento em que o pedaço do corpo da vítima estatela no chão. A funcionária que avistou o dedo, a princípio, pensou que se tratava de um pedaço de frango.

A polícia forense identificou o sangue do dedo como o sangue de Mahmood. A autoridade procurou pela vítima nos lixões da região. Sem sucesso. Também tentou rastrear rotas possíveis de voos de passaros da região, para encontrar o local em que a vítima foi enterrada, mas não achou nada. Enquanto isso, sem provas, Riaz espera por uma condenação. Ele ri.

Morre Belas Artes

Morreu Belas Artes que, segundo os letreiros da fachada, por 59 anos serviu à sociedade paulistana e aos retirantes com filmes da mais alta qualidade. Ali, perto da esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista, o prédio em cor de vinho falece após muitos protestos contra o fechamento das portas de um dos edifícios mais significativos da história da cidade de São Paulo.

Famoso pelas salas com nomes de artistas brasileiros de diversas áreas da indústria cultural, o Belas Artes acolheu Carmem Miranda, Oscar Niemeyer, Nelson Rodrigues, os solitários da noite e os interessados em propostas cinematográficas diferentes. Talvez, todos esses sejam seus filhos mais queridos. Ele nunca recusou ninguém. Mas sempre tem um xodó.

Durante as segundas sextas-feiras do mês, Belas Artes gostava de comandar uma festa conhecida como Noitão – ou Corujão, para os íntimos. Eram exibidos três filmes que seguiam a mesma temática. No fim da noite, começo do dia, Belas Artes servia Club Social e Toddynho para os convidados. Era uma oportunidade para que as pessoas encontrassem amigos de tempos antigos, da nouvelle vague, da brilhantina, do colégio, da vanguarda.

Belas Artes foi parceiro durante um bom tempo do Banco HSBC. Foi uma junção por interesse: de um lado, dinheiro, de outro, status. Apesar disso, foi uma cumplicidade muito bonita, inclusive, batizaram o nome daquela casa vermelha escura de HSBC Belas Artes. Em 2010, os dois se separaram deixando um buraco no coração de Belas Artes. Triste fim. Durante muito tempo, Belas Artes sentiu a falta de seu maior companheiro cultural, sucumbindo em uma eterna depressão.

O chão da casa já não brilhava como antes. O café era servido morno. As janelas transpareciam a poeira do divórcio. As escadas ficaram tortas. Até as pessoas que continuaram visitando Belas Artes saiam do recinto com um ar melancólico, Tão velhinho, diziam, Mas continua trabalhando como ninguém, tentavam animar.

Pois Belas Artes tentou continuar o que fazia de melhor: cinema. Devido a interessados na evolução moderna, ele entrou numa disputa difícil. Em novembro de 2010, anunciou um infarto. Parecia ser o fim. Mas persistiu por meses. A dor era profunda e os médicos tentaram aliviá-la com muito entusiasmo, Vamos tombar o edifício; seus parentes sentiam que estava próximo do fim, mas insistiam em negociar com a morte.

Em janeiro, Belas Artes entrou na UTI. Uma cena emocionante ocorreu na porta da casa: uma multidão vestida de xadrez, usando calças apertadas, vestidos coloridos, calçados Oxford, todos eles estavam lá para apoiar Belas Artes. Por isso não vá embora, gritavam.

Belas Artes resistiu por mais 2 meses, com muita alegria em seu saguão de entrada, no cafezinho e corredores estreitos. Ele deixou mais de 18,5 milhões de órfãos e inestimáveis netos e bisnetos que nunca poderão apreciar a cultura do cinema alternativo internacional no cerne do coração paulistano.