O bicho e o cachorro

Primeira vez que o vi, notei que éramos muito parecidos. Apesar de nunca termos nos falado durante nosso relacionamento, éramos muito parecidos. Eu o reconhecia por seu cheiro. Um perfume forte, extasiante e horrível. Mas para ficar ao seu lado, até isso agüentava. Nunca discutimos sobre mudanças de hábito, nem, ao menos, um chiado.
Foi uma companhia breve. Mas, dizem por aí, que o tempo passa mais rápido para mim. Um ano equivale a sete… E nosso apego não passou de uma caminhada de apenas meros 10 minutos.
Eu sabia que ele não era daqui. Assim como eu, ele era um errante. Refugiado da cidade, na cidade. Eu escutava seus sussurros, ele fugia de alguém. O que era, não deu para entender, mas ele tinha feito algo muito grave. Eu não me importava com isso, com seu passado. Gostava de sua presença, naquele momento.
Às vezes eu pedia por algum apreço, eu olhava para cima, fazia meu conhecido olhar, e suspirava forte. Infelizmente, ele não entendia a minha ânsia. Talvez, porque quando eu respirava, eu espirrava uma pneumonia que me afligia desde que acordei naquela manhã.
Estava frio naquela noite, então, vez outra, eu me agarrava em sua perna, apenas para sentir o calor de medo que ele exalava. Mas eu era enxotado para longe. Novamente, eu não me importava com sua falta de carinho, só queria estar ao seu lado, acompanhá-lo para onde ele estivesse indo.
Paramos. Estava vermelho. Os carros passavam perante nossos olhos. Os meus e os dele. Em uma última tentativa de carência, olhei mais uma vez para cima, aproximei-me de sua canela para me aquecer. Sinto uma dor em minha costela. Meus olhos se fecham para sanar a agonia.

Precisava fugir. Eu não queria ter usado aquele canivete. Era do meu avô. E nele não podia respingar qualquer gota de sangue, senão da minha família. Mas ela carregaria meu sobrenome. Não fosse por sua desobediência.
Estava atrasado, então, acelerei meus passos, deveria chegar ao estacionamento, antes que virasse a hora. Não queria pagar mais 10 reais por um carro parado em um terreno. Um absurdo.
Levo comigo o canivete. Era do meu avô. É meu, agora, e faz parte da minha história. Não vou largá-lo em qualquer lugar. Junto às suas lâminas, guardo o sangue de uma entranha machucada.
Olho para baixo, um cachorro. Não um cachorro qualquer, um bicho asmático, sem fôlego para me acompanhar. Aperto minha caminhada. E o infeliz continua a me seguir. E ainda, tenta compartilhar piolhos comigo. Chuto-o, e ele tosse.
Aquela peste de quatro patas certamente carregava consigo alguma maldição. Fez parar o trânsito de pessoas, e o sinal que estava verde durante todo o caminho, subitamente, torna-se vermelho. Mais uma vez, o cachorro esfrega suas pulgas em meu jeans. Dou-lhe um pontapé como resposta. Jogo-o longe de mim, finalmente, livro-me de um pesadelo. Com fasto em minhas retinas, observo-o estendido na rua, até um carro passar, e espalhar vísceras por todos os lados. Inclusive em meu jeans. Maldito cachorro.

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